Skrevet af Hans Christian Andersen
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CAPÍTULO 1: O INÍCIO
Copenhague, rua Østergade, em uma das casas não muito distantes de Kongens Nytorv, havia uma reunião. Não era uma festa. Apenas um grupo de amigos que se encontrava habitualmente, porque gostavam de estar juntos. Convidavam uns aos outros de forma que sempre tivessem aonde ir e o que fazer. Nesse dia o grupo estava junto outra vez, enquanto uns estavam sentados à mesa para jogar, os outros esperavam calmamente o que pudesse vir da dona da casa para entretê-los até sua vez de jogar. Naquele dia a conversa estava especialmente enfadonha até que alguém se lembrou de mencionar a Idade Média, um dos convidados imediatamente disse achar muito mais interessante aquela época se comparada a de agora. Um deles, o conselheiro Knap, achou excelente terem tocado nesse assunto porque ele defendia calorosamente o fato daquela época ser melhor do que a atual. O dono da casa compartilhava dessa ideia e ambos criticavam o físico Ørsted e suas publicações nos almanaques sobre as vantagens de vivermos em tempos modernos. Para ele, nos tempos do Rei Hans as pessoas eram muito mais felizes e sentiam-se muito mais satisfeitas.
Enquanto essa discussão acontecia na sala, no vestíbulo, onde estavam pendurados os casacos, guarda-chuvas, bengalas, capas e as galochas, duas mulheres, uma jovem e outra mais de idade, conversavam. Elas poderiam parecer serviçais ou acompanhantes de algumas das damas que vieram sem seus maridos. Um observador atento veria prontamente que em nada elas pareciam acompanhantes. Ambas tinham mãos muito delicadas, tinham um porte nobre, seus trajes, um tanto excêntricos para a época e nada condizente com a ocasião. Será?? Talvez!! Lembravam muito duas Fadas. A mais nova era sim, uma acompanhante da Fada mais velha e assistente da Fada da Felicidade. Sabem o que a Fada da Felicidade faz? Distribui pequenos regalos para tornar as pessoas mais felizes. A Fada mais Velha era a do Infortúnio. Essa Fada não delegava a ninguém suas responsabilidades pois queria estar certa de chegarem a seus destinos.
Ambas sentadas relatavam uma a outra como havia sido o seu dia, o que haviam feito. A primeira, por ser apenas uma assistente da Fada da Felicidade tinha muito pouca coisa a contar. No entanto, a outra, evitou que um chapéu caísse na água, obrigou a um cidadão prepotente inclinar-se diante de um homem modesto e descente e algumas outras coisas desse tipo.
– Sabe, tenho uma novidade – disse a fada assistente, – Hoje é meu aniversário e, como de costume, darei um presente a quem quiser, um par de galochas muito especiais. Elas são mágicas. Quem as calçar fará uma viagem no tempo para o lugar onde mais gostaria de viver. Imagine, quem as possuir será imensamente feliz!
– Você acredita nisso? Perguntou a Fada do Infortúnio. – Pela minha experiência, quem as possuir se arrependerá amargamente do momento de tê-las calçado e ficará feliz quando puder se livrar delas.
– Não penso assim. – vou deixá-las aqui perto da porta. Alguém irá calçá-las por engano e conquistará a felicidade sonhada.
Assim chegamos ao final desse diálogo sobre magia, felicidade e infortúnio.
CAPÍTULO 2: O QUE ACONTECEU AO CONSELHEIRO
Cansado, o Conselheiro Knap preparou-se para sair. Estava tão distante pensando nas maravilhas do tempo do Rei Hans que, sem perceber, calçou as galochas que não eram as suas. Ao sair e chegar à rua Østergade, voltou no tempo e suas galochas afundaram na lama, provocada pela chuva porque, naquela época, não havia calçadas.
– O que é isso? Que sujeira! – Ele estava irritado com aquela situação. – Onde está a calçada? Não vejo as lâmpadas, também sumiram com elas?
A lua ainda estava escondida, assim nada se podia ver na rua. O ar estava denso, carregado. Ele podia ver, logo na esquina, um quadro da Virgem Maria e, para iluminar o quadro, uma lâmpada de azeite. A luz era tão fraca que o Conselheiro mal podia ver a Virgem Maria e o Menino Jesus. Somente chegando mais perto podia vê-los bem. Pode ser o anúncio de alguma galeria de arte esquecido por aqui.
Nisso dois homens passaram por ele trajando roupas medievais e ele imediatamente pensou estarem ambos voltando de um baile à fantasia.
Algo mais estranho aconteceu, ao som de trombetas e tambores surgiram tochas que iam iluminando a rua. O Conselheiro parou para apreciar a procissão. Abrindo o cortejo, os tocadores de tambores batiam forte em seus instrumentos, seguidos pelo pequeno grupo de soldados, com suas tochas a queimar e uma arma muito comum usada na Idade Media conhecida como balestra. Atrás do cortejo vinha uma figura muito estranha, lembrava um homem de Deus, mas suas roupas eram muito diferentes das que ele já havia visto antes. Por isso perguntou quem era ele a uma das pessoas na rua.
– O Bispo de Sealand – respondeu o homem.
– Mas ele está muito diferente! Alguma coisa deve ter acontecido a ele. O Conselheiro começava a ficar nervoso.
Imediatamente pensou: “Não pode ser, eu conheço o Bispo muito bem!”
Assim resolveu seguir o cortejo por todo o caminho. Cruzando a rua Østergade, até chegar à Højbroplads, mas onde estava a ponte? Como poderia chegar a Slotspladsen sem a ponte? A escuridão era total, tentando enxergar a ponte só viu dois homens sentados ao lado de um barco, à margem do ribeirão.
– Vossa Mercê deseja chegar até a ilha? Perguntou um dos homens.
– Ilha? Não sei do que vocês estão falando! Até aquele momento o Conselheiro não havia entendido que estava fora de seu tempo, em um tempo considerado por ele melhor que o atual. Quero ir até ao Christianshavn, eu moro perto dali numa pequena rua perto da praça.
Os dois homens não conseguiam entendê-lo. Olhavam para ele espantados sem saber sobre o quê aquele homem lhes falava.
– Por favor senhores, onde está a ponte? Não posso entender por que não acenderam as luzes! Por que tanta lama na rua? Parece que entrei em um pântano!
A confusão aumentava, nem os barqueiros e muito menos o Conselheiro conseguiam entender-se.
Até a língua usada por eles era difícil para o Conselheiro compreender.
Foi-se embora cheio de interrogações: onde estava a ponte? E o muro de proteção que ficava ao longo do rio? “Isso tudo está um horror! As autoridades estão ocupadas com outras preocupações e não tomam conta da cidade! Quanto mais andava mais se sentia infeliz com o que via e sobre o tempo em que vivia. Decidiu seguir até Kongens Nytorv e lá pegar uma carruagem até sua casa pois, caso contrário, jamais chegaria lá.
Conseguiu chegar à rua quando a lua começava a surgir no céu.
“Meu Deus, o que aconteceu aqui? Østergade não existe!”
Avistou um portão e pensou que ao atravessá-lo poderia chegar a Nytorv. Que engano! Havia um campo deserto, com um canal ladeado por uma alameda de arbustos. Do outro lado havia uns barracões de madeira onde armazenavam as cargas vindas da Holanda, na verdade aquele lugar era conhecido como a praça dos holandeses.
– O que está acontecendo comigo? Bebi demais? O que é tudo isso? Não consigo entender! Onde estou?
Resolveu então voltar pela Østergade. A essa altura o luar iluminava por inteiro os arredores e ele pode perceber as casas construídas com madeira e cobertas de palha.
Cada vez mais o Conselheiro se sentia pior. Começou a imaginar o que havia comido e bebido para fazer-lhe tão mal. Lembrou-se de ter tomado um copo de ponche e comer salmão defumado. Essa combinação não deveria ser boa, somente isso poderia explicar o seu mal-estar. No primeiro momento pensou em voltar à casa onde estivera reunido e falar com a dona da casa, mas logo percebeu que poderia constrangê-la muito e depois, a essa altura, todos deveriam estar dormindo. Ainda assim, resolveu passar em frente da casa. Estranho, não havia nenhuma casa ali! “Deus do céu, estou perdido!” Não consigo reconhecer a rua, não vejo as lojas, somente casebres miseráveis! Onde estou? Estou mesmo doente, muito doente! Preciso de ajuda! Vou bater a porta dessa casa. Há luz, alguém deve estar acordado. Estou me sentindo muito mal!
Não precisou bater, a porta estava entre aberta, empurrou-a e entrou. Era uma taverna. Algumas pessoas estavam lá dentro, um capitão de navio, mais outros dois que poderiam ser mercadores ou artesãos, mais dois outros que pareciam professores. Conversavam, bebiam e nem se deram conta do recém-chegado.
A dona da taverna veio até ele. Imediatamente explicou não estar se sentindo bem, precisando de uma carruagem que o levasse a Christianshavn.
A mulher não entendia o que ele falava, balbuciou algumas palavras em alemão. Talvez ele não falasse dinamarquês, então repetiu sua história em alemão. A mulher do taverneiro convenceu-se de vez ser ele um estrangeiro, também pelas roupas esquisitas que usava. Entre desentendimentos e acertos, ela acabou entendendo que ele não estava passando bem. Trouxe-lhe água e deu-lhe de beber. A água tinha um gosto horrível, pois havia sido tirada da cisterna no fundo da casa. Mais e mais o conselheiro ficava confuso. Afundou a cabeça em suas mãos e deu um profundo suspiro. Ele não conseguia entender o que se passava. Tentando comunicar-se com a taverneira, viu um papel em cima da mesa e perguntou: –Esse é o jornal de hoje? Ainda sem compreender a taverneira passou-lhe o papel. Tratava-se de uma xilogravura sobre um fenômeno de cores observado nos céus de uma cidade na Alemanha.
– Mas isso é muito valioso, embora saibamos tratar-se de um fenômeno da natureza, chamado aurora boreal provocado possivelmente por descargas elétricas.
Os dois homens no bar ouviram o Conselheiro e um deles, muito respeitosamente, levantou-se, tirou o chapéu e dirigiu-lhe a palavra:
– Vossa Mercê parece ser um homem muito culto!
– Imagina! – disse o Conselheiro. – Sou um curioso e estudioso sobre tudo o que é novo, sei um pouco de tudo.
– Modestus est – disse o outro – lembrando ser a modéstia uma das mais sublimes virtudes! Suas palavras provocaram em mim a vontade de dizer: mihi secus videtur; mas, resolvi aguardar para dizê-lo em judicium, posteriormente.
Impressionado, o conselheiro perguntou: – Posso saber com quem tenho a honra de falar?
– Sou bacharel em Sagradas Escrituras.
“De fato, título e pessoa combinam perfeitamente”, pensou o Conselheiro. Passava por sua cabeça que, tão excêntrica figura, deveria ser da Jutlândia onde ainda habitavam pessoas como o seu interlocutor.
E ele prosseguiu: – Aqui não é o melhor lugar para prosseguirmos com essa conversa, mas, certamente, gostaria de continuar encontrá-lo, pois tenho como certo de que o senhor entende muito sobre literatura antiga.
– De fato – respondeu o Conselheiro. Gosto de ambos, a leitura dos clássicos e a literatura moderna. Não tenho paciência para essa literatura cotidiana, grande sucesso para o momento.
– Não entendi, dia a dia das pessoas comuns? O que isso significa?
– Refiro-me aos romances naturalistas escritos sobre a vida plebeia, cheios de ideias adocicadas – explicou o conselheiro.
– Entendi – disse o bacharel. O rei gosta muito delas, particularmente sobre os senhores Ifaim e Gavaino, Cavaleiros da Távola Redonda.
– Nunca ouvi falar sobre esses livros, quem os escreveu? Foi por acaso Heiberg? – perguntou o conselheiro. Heiberg foi um dos mais expressivos e populares autores dinamarquês do Século XIX.
– Certamente não, respondeu o outro. Foi editado por Godfred von Gehmen.
– Estranho, o único que conheço com esse nome foi o primeiro impressor de livros da Dinamarca...
– Isso mesmo, nosso primeiro e único editor! Concordou o bacharel.
Por estarem ambos os homens discutindo sobre épocas diferentes, a conversa evoluía, mas com algumas desconfianças de ambos os lados, sem contar desentendimentos porque embora houvesse conhecimento sobre o que conversavam, o fato de não mencionarem as datas parecia que faziam uma retrospectiva e, de certa forma, havia pequenas coincidências nos fatos. Por exemplo, quando se referiram a peste que dizimou quase metade de Copenhague, a data foi 1484. Para uns, alguns anos atrás, para o conselheiro, alguns séculos atrás. Depois fizeram referência a investida dos corsários ingleses, os quais afundaram navios logo ali no porto, a data de referência era 1490, ao que o conselheiro imediatamente concordou porque pensou tratar-se da guerra de 1801, a qual ele também fez severas críticas ao atrevimento dos ingleses. Porém, chega um momento em que a conversa parece tomar um rumo totalmente estranho e não há como, por mais absurdo que pareça, encontrar um ponto comum. Alguma coisa começava a acontecer porque olhares eram trocados, algo estava no ar!!!
Para o conselheiro o bacharel não passava de um ignorante; para o bacharel, o conselheiro era senhor de ideias atrevidas e fantásticas. Houve momentos de desentendimento absoluto entre eles. Ai, ambos se fitavam com uma expressão de espanto.
O bacharel tentava fazer uso de seu latim, piorando mais ainda o entendimento.
– De repente, a taberneira veio até ao conselheiro para saber se se sentia melhor.
Nesse momento, o conselheiro lembrou-se o porquê de ter entrado ali. A conversa o fez esquecer desse fato.
– Meu Deus, onde estou? Todo o seu estado de angústia voltou.
Alguém lá do fundo gritou: – Vieste em boa hora, vais beber conosco. Traga entre outras bebidas, a cerveja de Bremen.
Duas garotas vieram para servir-lhe. Tinham trajes muito estranhos e um gorro de duas cores. O conselheiro sentia-se mais e mais confuso, mas resolveu beber de um trago para ver se passava aquela sensação, ao que alguém disse: – Vá com calma, pois já chegastes aqui bem tocado! –
– Tem razão, acho que bebi demais. Poderia fazer o favor de chamar uma charrete para mim?
– Ele e um moscovita!
Para o conselheiro, este teria sido o grupo mais vulgar com quem nunca estivera antes. Sem dúvida o pior momento da vida dele.
Só havia uma saída! Abandonar o lugar, rastejando por debaixo das mesas. Passou do pensamento à ação, mas quando já estava com metade do corpo fora da estalagem, o pessoal na estalagem percebeu e correu para segurá-lo, somente conseguiram agarrar suas galochas e as arrancaram dele. Nada poderia ter sido melhor. O conselheiro estava no chão, de bruços, na rua Østergade. Ergueu a cabeça e conseguiu reconhecer o lugar. A poucos metros, o guarda-noturno dormia encostado a uma parede.
– Devo ter caído aqui e desmaiado, que sonho horrível! O que um ponche pode fazer com as pessoas! –
Não muito tempo depois já estava sentado confortavelmente em um coche que o levaria para sua casa. No caminho dava graças a Deus por viver nesse tempo e não naquele do sonho. Reconhecia sim, havia problemas em seu tempo, mas ainda assim era bem melhor do que aquele vivido em seu sonho.
CAPÍTULO 3: A HISTÓRIA DO GUARDA-NOTURNO
Um par de galochas! – pensou o guarda-noturno. – Provavelmente são do tenente que mora na casa em frente.
Ele gostaria de ter devolvido as galochas para o tenente, mas como já era tarde resolveu não incomodar ninguém.
– Por outro lado, meus pés estão frios e seria muito bom ter algo para aquecê-los.
Enquanto calçava as galochas, olhava para a casa a sua frente, na janela de cima, onde deveria ser o quarto do tenente, viu uma luz acesa. Ele andava de um lado para o outro. Assim olhando para cima pensou: – como a vida é estranha! O tenente poderia estar a essa hora dormindo confortavelmente em sua cama pois era sozinho e não tinha ninguém para perturbá-lo, ao invés disso andava de um lado para o outro. Ah! Como seria bom se eu pudesse estar em seu lugar!
Nem bem acabara de pensar e as galochas realizaram seu desejo. No mesmo instante o guarda-noturno assumiu o lugar do tenente. Já agora ele andava de um lado para o outro, com uma folha cor-de-rosa nas mãos onde estava escrito um poema. Quem não teve, por um momento em sua vida, a vontade de escrever um poema? Uma ideia é o começo de uma poesia, depois dela é só escrever. A escrita pelo tenente intitulava: Quem me dera ser rico! E dizia o seguinte:
Quem me dera ser rico eu rezo por isso muitas vezes
Quando eu era muito pequeno a ponto de ser insignificante
Eu pensava em ser rico, então me tornei um oficial
Eu recebi uma espada, um uniforme e penas para enfeitar minha roupa
Finalmente eu me tornei um oficial
Mas eu não era rico, infelizmente
Ajude-me Deus. Deus me ajude
Feliz na vida e ainda jovem eu disse uma noite
Uma garota de 7 anos beijou minha boca
Porque eu era rico em sagas e contos
Mas pobre em dinheiro
A criança apenas se interessou pelos contos
A esse tempo eu era rico, mas não em ouro, infelizmente
Isso nosso Deus sabe
Quem me dera ser rico, e ainda rezo para Deus
Agora a garota de 7 anos havia crescido
Ela é tão bonita, tão inteligente, e de um excelente caráter
Se ela entendeu o conto do meu coração,
se ela como antes, eu penso, era boa para mim,
mas eu sou pobre, infelizmente
Essa é a forma como o Nosso Senhor deseja que seja
Eu era rico em consolo, em ser calmo
Se esse fosse o caso então a minha dor não cairia no papel
Você, como meu amor, se você entende a mim
Leia esse, como um poema dos tempos da juventude
Seria melhor se você não entendesse isso
Eu sou pobre e meu futuro é negro, infelizmente
Nosso Senhor a abençoará.
Havia no poema a declaração clara sobre um amor e a dor de não poder realizar seu sonho. Ele o havia escrito para si e jamais o publicaria. Temos diante de nós um triângulo: um tenente pobre, uma paixão e o objeto dessa paixão. O cupido nada pode fazer, seu arco foi quebrado. Encostado à janela, vivendo a sua dor e tristeza, olhou para baixo, deu um profundo suspiro e pensou:
– O guarda-noturno lá embaixo é mais feliz do que eu. Tem um lar, uma esposa e filhos esperando por ele. Confortando-o quando ele precisa e se alegrando com ele quando ele está alegre, eu, porém, não tenho ninguém por mim. Gostaria de trocar de lugar com ele.
Foi pensar e acontecer. O guarda-noturno voltou a sua origem, o poder das galochas recuperou para ele seu antigo posto. “Nossa, o que aconteceu? Não foi um sonho, mas um pesadelo! Por alguns instantes eu fui o tenente, mas na verdade não gostei nenhum pouco dessa nova posição. A saudade de minha esposa e de meus filhos foi grande.” Assim, meneou a cabeça, para espantar o pesadelo ainda presente em sua lembrança. Uma estrela cadente cruzou o céu.
– Lá se foi ela. Para onde? Fico a imaginar como será a lua... gostaria de vê-la de perto! Esse nosso universo é povoado de coisas inimagináveis! Minha mulher lava as roupas de um estudante. Ele costuma dizer que quando morrermos nossos espíritos vagueiam pelo universo. Visitam as estrelas, a lua e assim podem desvendar os mistérios desse nosso mundo. É uma brincadeira, eu sei, mas seria interessante ir até lá, mas sem estar morto. Gostaria de dar só um pulinho lá e voltar.
Há coisas que não devem ser ditas quando se está com um par de galochas mágicas. Vocês bem podem imaginar o que aconteceu com o nosso guarda-noturno. Lembrem-se, ele manifestou um desejo, foi atendido e não gostou da experiência que viveu. Pelo menos serviu para ele ser grato e feliz por sua vida.
Pensem na velocidade da luz. Qualquer viagem feita por nós, mesmo usando o veículo mais veloz não poderia ser comparada a uma viagem realizada pela velocidade da luz, mas algo mais rápido do que a velocidade da luz é a velocidade da eletricidade. A morte é como uma descarga elétrica. Atinge nossos corações, nossa alma abandona nosso corpo nas asas da eletricidade. Para termos uma ideia, a luz do sol leva oito minutos para percorrer mais de cem milhões de quilômetros, a alma, nas asas da eletricidade leva menos tempo para vencer o mesmo percurso. É tão incrível isso! A distância entre um planeta e outro, não é maior do que a distância que nos separa de nossos vizinhos. Há um detalhe importante, lembrem-se o guarda-noturno usava as galochas e isso evitou separar sua alma de seu corpo.
Lá estava ele pousando na lua. A Lua é toda composta por um material muito leve, poderíamos até dizer, macio. Ela é cheia de crateras e nosso amigo estava agora na borda de uma dessas crateras e olhava para baixo. Bem lá no fundo havia uma cidade. Nada lembrava as cidades visitadas por ele antes. Tudo era transparente, torres, cúpulas, terraços e dançavam ao gosto do vento. Ao olhar para cima pode avistar a terra.
Bem lá embaixo havia estranhas criaturas, habitantes do lugar. Elas conversavam e nosso guarda-noturno podia entendê-los, o que foi muito bom, pois ele pode ouvir e acompanhar uma discussão acontecendo naquele exato momento, e o tema era a terra. Havia dois grupos discordando entre si: enquanto um dizia que a terra não podia ser habitada, o outro dizia que podia. O argumento mais conclusivo girava em torno da densidade da atmosfera terrestre. Com tal densidade seria impossível a seres vivos inteligentes como os “lunáticos” habitarem o planeta. Ao final uma conclusão unanime, somente a lua reunia todas as condições para manter seres vivos, portanto, a Lua era o lugar para reunir os únicos seres vivos e pensantes do universo.
O guarda-noturno a tudo ouvia, mas não se pronunciava. Como estaria seu corpo na rua Østergade. Ele estava no mesmo lugar, sem vida. O bastão em sua mão estava caído a seu lado. Seus olhos abertos fixavam a Lua, talvez tentando localizar sua alma.
Nisso um transeunte parou e perguntou as horas a ele. Não obtendo resposta, deu-lhe um tapa na cara. O corpo por não conseguir se sustentar, tombou para o lado. O passante muito assustado ficou paralisado olhando para o morto. Não muito tempo depois o corpo do guarda-noturno estava sendo transportado para o necrotério.
Fico imaginando qual a reação da alma ao chegar de volta à Rua Østergade e não encontrar seu corpo lá. Com certeza sairia a procura de seu corpo em diferentes lugares: departamento de polícia, hospital e finalmente o necrotério. Contudo, o que se sabe é que a alma sem corpo fica muito mais esperta.
Voltamos ao necrotério. O corpo deveria ser posto em uma banheira para ser lavado, mas antes disso precisaram despir o homem e o que primeiro lhe tiraram foram as galochas. O efeito mágico estava quebrado, a alma voltou imediatamente para seu corpo, ressuscitando o guarda. Passado o susto dos presentes o guarda declarou ter passado a pior noite de sua vida e, por dinheiro algum, gostaria de repetir a experiência. Louvava a Deus por tudo não ter passado de um sonho, ou melhor, um pesadelo. O guarda-noturno foi-se embora, mas as galochas ficaram no necrotério.
CAPÍTULO 4: UMA VIAGEM MUITO POUCO COMUM
O Hospital Frederik é muito conhecido em Copenhague, o porquê vamos saber agora.
Toda a volta do hospital é cercada por grades grossas de ferro. O portão à entrada fica trancado durante a noite. Contudo, os estagiários de Medicina, particularmente os mais magros, atravessavam por entre os varões e conseguiam escapar. Entre os que conseguiam escapar, aqueles com a cabeça menor sempre levavam vantagem. Nem sempre uma cabeça grande é resultado de sorte ou vantagem. Assim, esse motivo, faz desencadear nossa história.
Uma certa noite, um dos estagiários de plantão, daqueles de cabeça grande, pelo menos no sentido figurado, estava ansioso para dar uma saída. Apesar de toda chuva ele não desistiu da ideia. Precisava ir à cidade, nem que fosse por minutos. Não queria e nem precisava dar explicações ao porteiro. Qual o caminho? Atravessar por entre as grades de ferro.
Antes de sair passou pelo necrotério e viu as galochas esquecidas pelo guarda-noturno. Não pensou duas vezes, elas seriam muito necessárias por conta do temporal que caia. Calçou-as e saiu para o pátio.
Pensou consigo: “se a cabeça passar logo o corpo virá”. A cabeça passou sem nenhum um problema, ele ficou surpreso, mas seria a primeira obra das galochas. Se a cabeça passou o corpo viria logo atrás. Porém, ele não sabia que a galocha havia agido a seu primeiro pensamento.
Juntou toda sua força para fazer sair o ar dos pulmões, mas nada, seu corpo não passava.
– Como estou gordo, não podia imaginar que minha cabeça grande passasse com tanta facilidade e meu corpo, não.
Como não havia possibilidade de sair, pensou em desistir e assim trazer sua cabeça para dentro das grades. Impossível! Movia um pouco seu pescoço e nada mais. Situação vexatória a do estagiário e tudo por causa das galochas, mas ele nem de longe imaginava serem as causadoras do problema. Não podia sequer supor que um pensamento ou um pedido seu para ambos ficarem no mesmo lugar teria acabado com o problema. Ele continuava ali se debatendo contra aquela prisão.
A chuva continuava a cair torrencialmente. O porteiro estava longe e não o ouviria, mesmo gritando, a solução seria ficar ali até de manhã quando um ferreiro seria chamado para serrar as grades. Ficou imaginando a cena na manhã seguinte, os estudantes da escola em frente parariam para ver o que estava acontecendo enquanto o ferreiro serrava as grades, o mesmo aconteceria com os vizinhos do hospital, mas o grande problema, a maior humilhação seria a de ser alvo de risadas e piadas de todos os transeuntes. O simples fato de pensar nessa possibilidade deixou o estagiário possesso.
– Estou enlouquecendo! Somente precisava tirar minha cabeça dessas grades! Pronto estava resolvido o problema, mas ele não sabia que a solução era assim tão simples. Imediatamente desvencilhou-se da grade e lá estava ele do lado de dentro do hospital. Voltou correndo para o necrotério deixou as galochas lá e nem mais pensava em seu compromisso.
Os dias passavam e ninguém vinha ao hospital para reclamar as galochas.
Naquela noite, estava programada uma apresentação num pequeno teatro à rua do padre (Kannikestrædet). A casa estava cheia e em meio aos números de declamações, havia um novo poeta. Vamos ouvir:
A esperteza de minha avó era muito conhecida
Se ela tivesse vivido na Idade Média, ela teria sido queimada
Ela sabe tudo o que acontece e muito mais
Ela adivinhava o que poderia acontecer no próximo ano
Sim, mas ela nunca dizia 100% da verdade
Mas o que acontecerá no próximo ano?
Quais estranhos eventos acontecerão?
Sim eu gostaria de ver meu próprio destino,
da arte e da minha terra natal, mas também de todo o país
Mas minha avó achava que essas coisas não deveriam ser ditas
Mas eu insistia para saber e até que funcionava,
primeiro ela ficava em silencio, depois ela gritava um pouco
Isso era para mim como a homilia do pastor aos domingos
Eu era seu preferido
Somente dessa vez eu atenderei a seu pedido
Ela começou assim e depois disso deu-me seus óculos
Você agora vai caminhar para um lugar onde você gostaria de ir
Um lugar onde muitas pessoas boas virão
Onde você poderá ter uma melhor visão sobre elas
E depois disso você olha para a multidão através de meus óculos
Imediatamente todos acreditarão em minhas palavras
Como uma carta na mesa
Com essa carta você pode ver o futuro
Eu agradeci e fui embora testar os óculos
Onde posso ver melhor as pessoas, para onde devo ir
Penso em um lugar onde muitas pessoas caminham, uma passarela longa e estreita
Talvez não seja uma boa ideia, está frio e eu posso me gripar
Na Østergade, não é uma boa ideia porque meus pés ficarão sujos
Mas no teatro? Este será um lugar interessante
Esta casa de diversão à noite é perfeita
Aqui estou, como eu sou de fato
Se você me permitir, eu usarei os óculos de minha tia
A ideia é somente ver
Não vá embora
Parecer como você parece um jogador de cartas
Desse jogo de cartas ele poderá prever o futuro
(Quando chegou a essa parte do poema, o autor que recitava o poema, colocou uns óculos que tinha em suas mãos e continuou:)
Certo, agora você pode começar a ler as cartas.
A pessoa com quem ele conversava não disse nada, por essa razão ele aceitou como sim
Como um agradecimento a você, você será introduzido
Aqui todos nós pertencemos a um mesmo grupo
Eu prevejo para você, para mim, pelo estado e pelo país
Agora nós vamos ver o que as cartas dirão
Sim quem sabe poderemos rir muito
Oh, eu gostaria que você pudesse ver
Aqui há muitas cartas boas
Isso é muito bom, mas ao mesmo tempo quando são muitas é um pouco assustador
Aqui temos a Dama de Copas. Há alguns deles aqui
A preta traz o Rei de Espadas, o Rei de Paus e o Rei de Ouro
E agora eu tenho uma visão da rainha de espada eu a vejo com muito poder e com pensamento voltado para o cavaleiro de ouros
Esta visão sobre todas essas cartas deixou-me bêbado, posso ver muito dinheiro na casa e estranhos do outro lado do mundo, mas isso não é o que nós gostaríamos de saber
Vamos ver o que o jornal diz, mas sobre isso você deve ler a página principal.
Se agora fizesse uma crítica e expusesse coisas particulares, eu destruiria o jornal
Eu não vou tirar a melhor parte dele
O teatro? Todos conhecem o gosto, a melodia, e um tom agressivo de expressar
Não eu terei uma boa relação com o diretor do teatro...
Meu futuro? Sim, cada um de nós é capaz de imaginar seu destino
Está sempre em nosso coração
Eu não posso dizer o que eu vejo
Mas você ouvirá tão logo aconteça
Quem você pensa que é, um mágico?
Se realmente eu fosse mágico eu poderia descobrir mais sobre as pessoas.
Isto é porque, na verdade, se eu disser tudo o que vejo, posso fazer as pessoas tristes
Sim, provavelmente você fará mais gente infeliz
Quem terá a vida mais longa, a senhora, ou o senhor lá da ponta?
Não posso dizer isso, se disser será muito pior
Deveria eu adivinhar sobre isso? Sobre? Sobre?
Sobre? Sobre? Ao final eu não sei. Eu estou envergonhado e aborrecido porque você pode fazer uma pessoa imensamente triste.
Agora eu verei o que eles pensam e acreditam
Eu com meu poder de ler as mãos poderei predizer o futuro
Você acredita? Não. O que fará você feliz?
Você acredita? Isso vai acabar em nada
Você sabe com certeza que você é somente uma simples melodia
Assim eu vou parar de falar, honrosa sociedade
Eu deveria dizer, mas não o fiz.
O poema foi muito bem declamado e o declamador recebeu do público um entusiasmado parabéns. Sabe quem estava entre os espectadores? Nosso estagiário de medicina. Já não se lembrava mais do que havia acontecido na noite anterior. Novamente ele usava as galochas. Ninguém reclamou por elas, a chuva continuava a cair torrencialmente, assim, nada melhor do que aproveitar essa proteção. As galochas eram bem-vindas.
O estagiário gostou do poema e, igualmente dos óculos mágicos que previam o futuro. Imediatamente veio o desejo de possui-los, não tinha a intenção de adivinhar o futuro de ninguém, queria mesmo era enxergar dentro dos corações das pessoas. Essa ideia parecia, para ele, mais interessante do que adivinhar o futuro das pessoas. Olhando para a primeira fila pensou, como seria bom poder entrar no coração de cada uma daquelas pessoas, certamente, elas têm muitas histórias e seus corações devem parecer uma loja com artigos expostos à vitrine. Diferentes lojas, diferentes vitrines, diferentes artigos a serem expostos e os proprietários esperando pelos clientes para lhes oferecer o seu melhor, ou talvez, nada tão bom. Há uma loja muito especial que eu gostaria de visitar, mas infelizmente sua dona já contratou um ajudante... isso não me deixa feliz...
Seu pensamento continuava a divagar, e aí entram as galochas. Percebendo seu desejo, imediatamente os realizou levando o estudante a fazer a mais fantástica viagem jamais imaginada por ele: ir até ao coração de cada uma das pessoas da primeira fila.
A primeira visita ocorreu no coração de uma dama mais parecida com um instituto ortopédico, segundo o estagiário, onde podia encontrar todo o tipo de defeito, pernas tortas, corcunda, corpos com defeitos de todos os tipos. Vocês podem imaginar o que seja isso? Ali, em seu coração ela colecionava todos os defeitos físicos de suas amigas e ia anotando e guardando e visitava esse museu diariamente com prazer.
Saindo rapidamente desse lugar o estagiário entrou no próximo coração. Ali havia paz, era como se estivesse entrado em uma enorme catedral. O altar estava rodeado por pombas que voavam serenamente. Quanto gostaria de ficar ali por mais tempo, mas ele precisava seguir o seu curso. A música ainda estava em seus ouvidos. Todo aquele ambiente lhe trouxe uma imensa serenidade, mas já estava preparado para sua próxima visita.
O ambiente era outro, um sótão e uma mãe enferma estava deitada em seu leito. As janelas estavam abertas e a luz do sol entrava resplandecente. Rosas cresciam do lado de fora da janela e dois rouxinóis vieram pousar e cantavam enquanto a mãe abençoava sua filha.
Já estava em outro lugar mais parecia um açougue porque havia carnes penduradas por todos os lados. Esse coração pertencia a um dos homens mais ricos e respeitados. Do coração desse homem, de nome bastante conhecido, foi para o coração de sua esposa, mas sua visão foi de algo muito estranho estava em um pombal abandonado. O retrato de seu marido ali estava balançando de um lado para o outro e, na mesma dança do retrato, as portas do pombal abriam e fechavam de forma a sempre entrar um novo ar.
Dali foi para um lugar onde havia muitos espelhos, idênticos aos do Rosemborgslot. Porém, esses espelhos tinham uma estrutura horrível pois deformava as pessoas que se colocavam a sua frente, o dono do lugar estava radiante, ele estava sentado ao chão, como o Dalai Lama e parecia muito feliz ao ver sua imagem refletida no espelho, uma pessoa enorme e gorda.
De lá foi parar em uma caixa de costura, muitas agulhas de ponta muito fina estavam lá dentro. Que tipo de coração deve ser esse, talvez de uma pessoa muito amarga e solitária. Engano! Esse era o coração de um jovem oficial que já havia recebido muitas condecorações. Diziam ser ele dono de um espírito muito elevado.
Meu Deus! O que está acontecendo comigo? Desde ontem tenho vivido experiências muito confusas! Começava a lembrar-se do fato de ter ficado preso nas grades do portão de ferro. Devo estar muito doente, talvez com febre. Estou suando muito. Talvez devesse ir para uma sauna, sentar-me lá, no último degrau, para ver se melhoro. Nem bem acabou de pensar já estava lá dentro. Completamente vestido e, com certeza, com as galochas. Gotas de água quente do teto da sauna começaram a pingar em seu rosto. Saiu correndo dali e foi para o chuveiro. O encarregado da sauna assustou-se por ver ali um homem todo vestido e calçado.
Para não parecer loucura, o estagiário disse estar pagando uma aposta, ao encarregado da sauna. Saiu dali o mais rápido possível, foi para seu quarto, colocou um emplasto contra loucura e dormiu.
No dia seguinte ao acordar tinha uma enorme placa de sangue em suas costas. Foi o seu lucro por ter usado as galochas.
CAPÍTULO 5: A TRANSFORMAÇÃO DO ESCRIVÃO
Eu não sei sobre vocês, mas eu não me esqueci do guarda-noturno. De repente veio-lhe à memoria as galochas esquecidas no hospital e foi lá buscá-las. Como ninguém havia reclamado por elas, entregou-as na delegacia.
Um escrivão que passava por ali, viu as galochas e as achou muito parecida com as suas. Ele até duvidava que um sapateiro pudesse notar a diferença.
Um policial chegava à secção com alguns papéis.
Ficou por ali e o escrivão e ele conversaram por um bom tempo.
Os dois pares de galochas continuavam ali. O escrivão olhou para elas e ficou sem saber se as suas eram as da esquerda ou as da direita. Ficou sem saber o que fazer, “qual será a minha?” Teve uma ideia: “Certamente as molhadas são as minhas”.
Ledo engano! As galochas mágicas eram as verdadeiramente molhadas. Incrível! até gente da polícia comete enganos; deixa escapar pistas!
Hora de ir para casa! Plantão encerrado. O escrivão guardou em seu bolso os papéis para serem copiados, calçou as galochas e se foi.
Era um domingo como outro qualquer, pela manhã. Excepcionalmente o dia estava bonito, ensolarado convidativo para um passeio a pé e assim nosso escrivão iniciou sua caminhada e foi em direção à Frederiksberg. Não foi direto para casa. Como é bom caminhar calmamente por Copenhague durante um belo dia de sol. É relaxante e disso nosso escrivão precisava. Seu trabalho o mantinha horas trancado dentro do escritório. Ele era muito responsável e disciplinado, assim fazia seu trabalho com toda dedicação e competência, razão pela qual esse passeio estava fazendo tão bem.
Durante sua caminhada nada desejou, em nada pensou, somente aproveitava aquele momento de tranquilidade. Assim, as galochas não tinham nenhum trabalho a fazer.
Mas, no parque, encontrou um amigo, um jovem poeta. Esse lhe disse que iniciaria uma longa viagem no dia seguinte.
– Outra vez? Vocês poetas são felizes porque são livres. Vão para onde querem e quando querem. Nós, pelo contrário, vivemos presos nessa terra, cumprindo com as obrigações as quais nos foram impostas. Parece estarmos atados a correntes e não podemos nos livrar delas.
– Certíssimo, mas lembre-se, no final da corrente há uma cesta de pão. Você não precisa se preocupar com sua velhice pois, quando se aposentar terá o direito de receber o pagamento da aposentadoria.
– Mas você não pode comparar sua vida com a minha. A sua é muito melhor! Se não veja: nos dois usamos a pena para trabalhar. Porém há uma grande diferença no resultado de nosso trabalho. Enquanto seu trabalho é elogiado, admirado e você é homenageado; eu passo os dias copiando coisas desinteressantes. Você muito mais se diverte do que trabalha.
O poeta e o escrivão menearam a cabeça negativamente e cada um tomou seu caminho.
Enquanto isso alguns pensamentos começaram a tomar forma para o escrivão: – os poetas são muito estranhos!
“O que faria eu se fosse um deles?” “Meu estilo seria bem diferente, não escreveria nada meloso ou lamuriante. Um dia como o de hoje é ideal para os poetas. O ar está límpido, o céu azul, as nuvens parecem chumaços de algodão. A natureza está toda verde, enfeitada e perfumada. Há quanto tempo não me sinto tão bem!”
Perceberam?! Ele já havia assumido a vida do poeta. Externamente ele era o mesmo, mesmo porque os poetas em nada diferem fisicamente dos outros humanos, mas suas reações haviam mudado. Eles são irreconhecíveis no meio da multidão e, às vezes, mais sensíveis e talentosos se comparados a muitos outros famosos que andam por aí. Basicamente a diferença entre um poeta e os outros seres humanos é a memória visual aguçada. Tudo o que vê, ouve e lê fica guardado, retido até que um dia ele usa em um de seus trabalhos transformando memórias em palavras escritas. Isso nós não sabemos fazer. De repente esse dom tomou conta do escrivão. O que estava acontecendo com ele era uma passagem entre o ser escrivão e o ser poeta.
“O aroma doce do ar, das flores me deixa completamente inebriado ele disse baixinho, ou melhor o escrivão-poeta, ele ainda não havia percebido que seus pensamentos, suas memórias começavam a tomar forma poética. Voltou no tempo quando ainda criança frequentava a casa da Tia Lone.
Achou estranho pois há muito tempo não se lembrava da velha tia e do cheiro do seu jardim. Ela morava atrás da Bolsa de Valores. Em sua casa havia muitos vasos e mesmo durante o rigoroso inverno as flores estavam sempre lindas.
Sua memória espiritual começou a emergir muito rápido.
“Quando eu ia visitá-la, costumava colocar moedas de cobre no aquecedor e quando elas estavam bem quentes as colocava na janela para derreter o gelo, formando círculos que me possibilitavam ver a paisagem cinzenta, sem vida. No canal podia-se ver navios parados esperando o bom tempo voltar e assim poder navegar. A volta deles somente corvos grasnavam.
“Ao desabrochar da primavera, tudo mudava! Havia cores, vozes, alegria e os navios antes parados, se preparavam para zarpar para terras longínquas.”
“Vida estranha tem sido a minha! Passo meus dias sentado a uma mesa, redigindo papéis, carimbando outros, preenchendo passaportes para outras pessoas, mas nunca para mim. – Sina cruel a minha!”
O escrivão estava se sentindo muito estranho, estava mais alegre, mais leve. Talvez o ar da primavera esteja me fazendo bem!
Lembrou-se dos papéis que deveria copiar e tirou-os do bolso. “Certamente esses papéis enfadonhos vão desviar meus pensamentos dessas lembranças.”
Na primeira folha, em letra de forma, estava escrito: “Senhora Sigbrith – tragédia em cinco atos.”
“Que estranho! É um manuscrito e a letra e minha! Teria eu andado a escrever alguma tragédia e não me lembro disso!
A cada nova folha, mais assustado o escrivão ficava. Um novo conjunto de folhas surgiu, mas desta feita era uma comédia: Violência no grande dia de orações.
– O que fazer? Alguém deve ter escrito essas peças e colocado em meu bolso. Há ainda uma carta. Vamos ver do que se trata. Talvez ela possa afastar pensamentos lúgubres...Cada vez mais estou achando tudo muito estranho.
A carta vinha da parte de um famoso diretor de teatro que havia negado a apresentação daquelas peças. Sua carta não era das mais corteses.
– Recusadas??!! Como pode ser? Como o leitor pode perceber, não era mais o escrivão que falava, mas o escritor ofendido.
Quanto mais o tempo passava, quanto mais acontecimentos novos ocorriam, mais a cabeça do escrivão ficava confusa e rodopiava. Cansado, sentou-se em um banco e colheu uma margarida. Se fosse um botânico, gastaria horas explicando como aquela flor nasceu ali, mas ele, em poucos minutos, ficou sabendo de toda a história contada pela margaridinha. O sol era muito importante para ela pois ajudava a crescer, a abrir suas pétalas e exalar um doce perfume. História de cá, pensamento de lá e o poeta começou a cogitar sobre a nossa própria existência e como os sentimentos acabam por conduzir nossas vidas, nossas atitudes, nossa maneira de ser. A luz do sol e o ar são muito importantes para nós, precisamos deles para nos alimentar e nos fazer belas, mas eu prefiro mais a luz, para ela eu me abro, resplandeço. Quando o sol se põe eu abaixo minha cabeça, adormeço e fico envolta pelo abraço do ar.
– A luz do sol me deixa bela, me faz brilhar!
– Mas o ar a mantem viva é por causa dele que você respira, disse o poeta.
Não muito longe dali um garoto batia com uma varinha numa poça d’água, os respingos que surgiam a cada batida da vara na água molhavam os ramos e as folhas das plantas à volta. Novamente o poeta começa a imaginar o resultado dessas gotículas em cada ramo, o trajeto percorrido por elas, guardadas as devidas proporções, seria como se nos atirasse a nós, humanos, nas nuvens.
– Como mudei, pensou o poeta! Não parece ser eu mesmo. Tudo parece um sonho. Como será quando eu acordar? No sonho tudo parece tão natural! Mas na verdade sinto-me muito bem, nunca estive tão tranquilo! Talvez amanhã tudo seja diferente. Nossos sonhos são tesouros bem guardados. Contudo, quando acordamos esse tesouro se desfaz como a neve sob o calor do sol. Seria bom se os sonhos pudessem se transformar em realidade.
Seu olhar desviou para um pássaro que saltitava de galho em galho. É maravilhoso ser livre e poder saltitar de um lado para outro. Gostaria de ser um deles. Foi pensar e mudar.
As mangas de seu casaco eram agora asas, suas roupas as penas que cobriam o seu corpo. E as galochas eram agora garras. – Que sonho mais louco!
Tentou voar e conseguiu. Ele estava agora voando! Já estava empoleirado em um galho e cantava alegremente. Contudo sentiu falta da poesia norteadora de seus últimos pensamentos e suas palavras. Infelizmente as galochas não podem desempenhar duplos poderes. Quis ser poeta e imediatamente esse dom tornou-se realidade, quis ser num pássaro e assim foi, mas ao adquirir um novo status perdeu o anterior.
– Interessante, cantou o pássaro-escrivão-poeta, veja leitor o que me aconteceu; de manhã estava na delegacia e copiava documentos, à tarde sou uma cotovia cantando no parque de Frederiksberg. Isso vale uma história!
A fome levou nosso pássaro para o chão. Chegou perto de um monte de capim que parecia uma montanha se comparado a seu tamanho. Mas, de repente, tudo ficou escuro e por mais que se debatesse não conseguia escapar dali. Estava preso em um boné e o menino que o havia prendido não o soltava por mais que o escrivão-poeta-cotovia esbravejasse.
O garoto ia muito feliz com sua aquisição. Ao atravessar o parque deu de cara com dois rapazes que, dada sua categoria social, em pouco tempo estariam cursando o ensino médio em uma boa escola, não por capacidade. Inteligência e capacidade não eram seu forte. Como tinham dinheiro ofereceram duas moedas ao garoto pobre que imediatamente aceitou pois, com elas poderia comprar alguns caramelos. Assim o escrivão-poeta-cotovia mudou de mãos.
O escrivão chegou a uma bela casa em uma zona nobre de Copenhague.
“Bom que tudo isso não passa de um sonho: primeiro era um escrivão, transformei-me em um poeta e agora numa cotovia. Só espero que esse sonho acabe bem.”
Sem o chapéu que o cobria completamente pode enxergar tudo a sua volta. Estava em uma bela casa, em uma ampla sala e, ao encontro dos meninos, vinha uma senhora risonha e gordinha. Não ficou muito feliz em ver a cotovia.
– Por que vocês trouxeram esse passarinho tão feio e sem graça? Somente por hoje ele fica aqui. Tem uma gaiola vazia perto do poleiro do papagaio é a gaiola do canário.
Voltando-se para o papagaio falou toda falsete:
– Veja lourinho, o presente que a mamãe trouxe para você!
O papagaio não pareceu muito entusiasmado e até virou-lhe as costas. Mas o canário começou a cantar, muito animado, deixando a mulher entediada fazendo-a cobrir a gaiola com um pano branco.
O pobre canário fez: – Tuí! Tuí! Deve estar nevando, de repente tudo ficou branco. Depois disso calou-se.
A gaiola do passarinho sem graça e comum, de acordo com a dona da casa, ficava entre o poleiro do papagaio e a gaiola do canário. O papagaio só fazia repetir uma única frase que havia aprendido em dinamarquês: “Eu sou gente! “Todos os outros sons emitidos pelo papagaio não podiam ser entendidos por mais ninguém, mas o escrivão-poeta-cotovia entendia todos, inclusive os trinados da cotovia.
O canário tinha saudade das palmeiras e amendoeiras em flor, dos seus irmãos e irmãs. Gostaria de voar sobre as flores, sobre as águas do mar e observar as águas marinhas, agitando-se sobre as ondas. Na minha terra havia muitos papagaios e eles tinha sempre um enorme repertório de piadas que nos faziam rir muito.
– Todos sem graça, sem educação e sem cultura, não são como eu pois, eu também sou gente!
Ele não ficou feliz em ver a reação do canário e da cotovia.
– Não acharam graça no que eu disse? Todos riem quando eu digo isso e por que vocês não riem? E repetiu seu refrão: “Eu também sou gente”!
– Sinto muito! Você tem memória curta! Já se esqueceu das palmeiras, das frutas frescas, as jovens dançando embaixo das árvores floridas? E a relva verde que cobria as colinas!
– Lembro sim e muito bem, mas a vida aqui é muito melhor. Sou bem tratado, como bem, as pessoas se divertem comigo quando digo que também sou gente. Eu sou uma ave inteligente e optei pelo melhor. Não sou como vocês que perdem seu tempo com pensamentos poéticos. Você pode ser muito inteligente e se esforça por produzir o mais bonito trinado, mas o que ganhou foi terem coberto sua gaiola com um pano branco. Nunca fariam isso comigo. Custei caro e faço as pessoas rirem, não pode ser melhor! Uma combinação perfeita.
Agora voltaram a atenção para a cotovia e o canário perguntou:
– O que você acha de tudo isso? Você nasceu aqui nessa terra e ainda assim está aí, trancado nessa gaiola. Deve estar fazendo frio lá de onde você veio, mas mesmo assim penso que você preferiria estar lá do que aqui. Fuja! A porta de sua gaiola está aberta e lá em cima há um basculante aberto, não poderia ser melhor. É sua chance.
O escrivão-poeta-cotovia não perdeu tempo. Voou na direção da janela, justo quando o gato entrava na sala. O canário começou a bater as asas freneticamente e o papagaio gritava: “Também sou gente!” “Também sou gente!”
A essa altura o escrivão-poeta-cotovia já estava na rua e sobrevoava os telhados. Quando cansou procurou um lugar para descansar. Escolheu uma casa que lhe pareceu familiar e aconchegante. Entrou pela janela aberta, só então reparou que estava em sua casa. Voou para seu quarto, pousou sobre a mesa e gritou:
“Eu também sou gente!” Repetiu sem saber o porquê, a frase do papagaio. Mas é claro, caro leitor essa era a palavra mágica, ou a expressão mágica fazendo-o voltar para sua forma humana, embora continuasse sentado na mesa.
– Deus seja louvado! Dando um salto para o chão.
– Eu nunca fui de sentar-me na mesa, como vim parar aqui? Talvez tenha andado perambulando pelo quarto enquanto dormia! Que sonho esquisito! Vivi uma aventura que nunca imaginei!
CAPÍTULO 6: O MELHOR QUE AS GALOCHAS PUDERAM FAZER
O leitor deve estar curioso a respeito desse título. Até agora quem calçou as galochas, não foi muito feliz, ou talvez tenha reconhecido ser a vida deles muito melhor do que as que eles sonhavam ter. Mas vamos ver o que aquelas galochas aprontaram dessa vez.
No dia seguinte, o escrivão estava em seu quarto quando ouviu baterem à porta. Era seu vizinho de quarto, um estudante de teologia. Fora até lá para pedir-lhe as galochas emprestadas. Queria fumar, mas a grama do jardim interno ao prédio estava muita úmida e ele não queria molhar seus pés. Na verdade, aquilo não era bem um jardim, mas considerando ser no centro da cidade, podia ser chamado de jardim.
O estudante de teologia já estava lá fora, andando de cá para lá enquanto fumava seu cachimbo. Era muito cedo e não tardou a corneta anunciar a partida da diligência. Eram seis horas da manhã.
– Como gostaria de viajar! Existe coisa melhor? Gostaria de fazer uma longa viagem a países como a Suíça ou Itália...
Desejo expressado, desejo concedido, as galochas não perderam tempo, se demorassem mais talvez nosso estudante poderia desfiar um número enorme de países que gostaria de conhecer. Lá estava ele, viajando pela Suíça com os outros oito passageiros. Estava sentado entre dois dos passageiros. O desconforto era total. Sentia-se espremido ente eles. Não estava bem, tinha um nó na garganta e uma dor de cabeça enorme. Parecia ter o sangue descido por suas pernas, seus pés estavam inchados e as galochas os apertava mais ainda. Um pouco de dinheiro em um bolso, o passaporte no outro e em seu pescoço, pendurada, uma bolsinha de couro presa por um cordão. Sempre que adormecia e sonhava acordava assustado porque achava que lhe tinham roubado esses bens preciosos. Assim, ao acordar, batia nos dois bolsos e no peito para ver se todos estavam em seus lugares. Era interessante como fazia essa verificação sua mão traçava um triângulo enquanto realizava a busca. Havia tanta coisa na diligência que ele não conseguia enxergar a paisagem. Quando finalmente conseguiu avistar as montanhas enormes da Suíça, imediatamente lembrou-se de um verso recitado por um amigo comum quando viajava na mesma situação por aqueles lados:
Sim, aqui e muito bonito,
como meu coração deseja
Eu olho para Mont Blanc, meu amor.
Eu desejo apenas ter bastante dinheiro!
Ah! Somente assim seria bom estar aqui.
Tão majestosa e, ao mesmo tempo tão sombria e melancólica a paisagem a sua volta. Não se podia ver os picos das montanhas pois as nuvens os encobriam, os pinheiros pareciam ameaçadores ao toque.
– Aquele ambiente e a falta de dinheiro fizeram o estudante lamentar por estar na Suíça e achar que seria bem melhor estar na Itália, em uma terra quente, onde ele podia trocar seu dinheiro.
Pensamento transformado em realidade. Lá estava o jovem teólogo na Itália exatamente na estrada que liga Florença a Roma. As águas do lago Trasimeno, em azul-escuro, brilhavam à luz do sol. Ali, naquele mesmo lugar, Aníbal venceu Flamínio. As videiras entrelaçavam seus ramos como se estivessem a bailar. As árvores abrigavam crianças que cuidavam de um rebanho de porcos de pele escura. Não há como se duvidar, uma cena como essa, se revelada em uma tela seria imediatamente reconhecida como uma paisagem italiana.
Outra era, porém, a situação dentro da diligência, uma nuvem de insetos picava a todos, nem os ramos de murta usados para espantá-los ajudavam. Os pobres cavalos mal conseguiam dar conta de seguir viagem tal o número de insetos que os atacava. De tempo em tempo o cocheiro parava a diligência e ia espantar os insetos para dar um pouco de alívio aos pobres animais. A situação dentro da diligência não permitia aos passageiros aproveitarem a vigem.
Com o pôr do sol, veio o vento da noite fria, e claro o frio era insuportável. Uma tonalidade esverdeada tomava conta das montanhas e nuvens. A paisagem podia ser detalhadamente descrita pois era iluminada pela luz do crepúsculo. A Itália não se descreve e preciso ir até lá. Os passageiros teriam certamente aproveitado tão deslumbrante paisagem caso não estivessem cansados e famintos. Queriam o quanto antes chegar a uma estalagem.
A estrada cortava um olival e as árvores lembravam nitidamente os salgueiros cheios de nós dinamarqueses. No meio daquela paisagem havia uma pequena estalagem na frente da qual o cocheiro parou. Mendigos esperavam os passageiros. Cada qual pior em seus andrajos, um deles parecia o filho dileto da fome. Os outros apresentavam todos os tipos de mazelas físicas possíveis a nossa imaginação. Eles nada mais representavam do que a mais decadente forma de viver.
– Eccelenza, miserabili e iam exibindo todo o tipo de defeito para os passageiros.
A porta se abre, surge a esposa do dono da estalagem, suja, despenteada, cheirando mal. Esse era somente o começo, as portas dos quartos precisavam ser fechadas com cordas, morcegos voavam soltos por todo o ambiente. Aquele era seu lar. O cheiro era insuportável.
– Talvez o estábulo fosse o melhor lugar para comermos. O cheiro de lá é nosso velho conhecido – disse um dos passageiros.
As janelas abertas para entrar ar fresco serviram para que os mendigos mutilados entrassem e continuassem sua cantiga: “ Miserabili...Eccelenza, miserabili...”
As paredes estavam cobertas por mensagens deixadas pelos hóspedes, mas certamente, não faziam referência às maravilhas da paisagem italiana.
Quando veio o jantar, nada podia ser pior, uma água quente onde boiavam azeite velho e rançoso e pedaços de pimenta. A dona da estalagem chamava a isso de “sopa”. A salada era temperada com o mesmo azeite. Ah! O prato principal: cristas de galo fritas com ovos quase podres. Havia vinho, mas parecia vinagre.
A bagagem dos passageiros foi empilhada em frente da porta da estalagem e eram vigiadas pelos passageiros que se revezavam durante a noite.
O primeiro turno coube ao estudante de teologia. Que noite! Nada podia amenizar o cheiro do local, o calor insuportável, o ronco dos mendigos que mesmo dormindo continuavam dizendo miserabili e os insetos e mosquitos que se banqueteavam em suas vítimas.
– Viajar é maravilhoso, mas seria melhor se fosse somente nosso espírito... Assim não sofreríamos com as surpresas e as dificuldades da viagem. Uma viagem não nos faz completamente felizes todo o tempo. Nesse momento quero o melhor, a felicidade. Mas onde ela estará? Sei onde ela está! Gostaria muito de estar lá...
É só pensar e acontecer. O estudante de teologia estava de volta a seu quarto. Lá estava ele, de volta a seu quarto. As cortinas brancas do quarto estavam cerradas e no centro do quarto um caixão onde repousava o corpo do estudante porque sua alma o havia deixado para a longa viagem. Sem desconforto e sem surpresas... “não digas que alguém é feliz, antes que ele esteja em seu túmulo “Sólon disse isso e temos a confirmação nessa história.
Todo morto é como se fosse uma esfinge, indecifrável, não responde perguntas, contudo quando a alma ainda estava no corpo do estudante, ele escreveu uns versos que tinham como alvo ele mesmo.
Você forte morte, seu silêncio me deixa apavorado
Os passos da morte você somente vê nos túmulos do cemitério
Poderia o pensamento de Jacó quebrar?
Deveria eu somente ser erguido, como grama no jardim da morte?
Nossa grande dor o mundo normalmente não vê!
Você, que está sozinho, no final de sua vida,
Em um mundo em que seu coração foi mais agredido
como a terra atirada em seu caixão!
Naquele momento podia-se ver dois vultos naquele quarto a Fada do Infortúnio e a assistente da Fada da Felicidade. Ambas fixavam seus olhares no estudante morto.
– Você pode me dizer que tipo de felicidade suas galochas mágicas trouxeram para os homens?
Ao que a assistente da Fada da Felicidade respondeu:
– O estudante está feliz, dorme o sono dos justos, o sono da paz!
– Ora, não diga asneira! Ele se foi antes de terminar seu tempo. Não foi suficientemente forte para alcançar seus objetivos. Vou ajudá-lo.
Dizendo isso tirou as galochas dos pés do estudante, fazendo com que ele revivesse. Logo depois sumiu com as galochas. Talvez essa tenha sido a melhor solução!